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Crônica : Porta-bandeira

Esmeralda subia e descia o morro carregando em voluptuosidade o seu corpo escultural. Parecia modelo de passarela inclinada ao vencer rampas e escadarias mostrando seu lindo par de pernas. Sim, Esmeralda era bela e reinava no cume do morro que abrigava a favela onde morava, o barraco plantado em local desvalorizado devido à altitude, mas que, por causa dela, de Esmeralda, era o mais importante e valorizado. Para ela, o morro não passava duma colina que desde a infância ela dominara com desenvoltura e alegria.

Como era bela a moça Esmeralda! Monumento de mulata, olhos verdes, cabelos castanhos e caídos preguiçosamente ao longo das costas seminuas e sobre seus ombros à mostra em decote apurado, a saia aberta do lado deixando à mostra, ao caminhar, uns belíssimos pedaços de suas coxas invisíveis. Não há mais necessidade de descrevê-la, nenhum adjetivo é capaz de qualificar tanta beleza.

Alta e esbelta da cabeça aos pés, lá vinha ela desfilando na precisão do salto alto e no menear das cadeiras irradiando sensualidade. Sim, ninguém resistia em mirá-la, alguns em olhares dissimulados e outros escancarados em cobiça. Mas Esmeralda distribuía a mesma simpatia para todos, homens, mulheres e crianças, deixando evidente, em sua majestade, que um dia ela mesma escolheria o seu príncipe encantado. Mas nem por isso perdia o brilho do rosto, lindo de fazer inveja aos raios rutilantes do sol que a bronzeava em respeito.

O nome dela, Esmeralda, fora inspiração do pai. Ele vira nos olhos da menina, logo ao nascer, umas luzes que mais pareciam as da pedra resplandecendo em brilho celestial. Sim eram uns olhos maravilhosamente verdes e brilhantes. Daí chamar-se Esmeralda, obra-prima de Paulo e Isabel, mestre-sala e porta-bandeira da Escola de Samba mais querida da Zona da Leopoldina.

Desde criança, ela aflorava como substituta da mãe, o samba ocupando-lhe os poros, correndo em suas veias e artérias e lhe tomando o espírito. Assim cresceu e se tornou destaque, enquanto treinava com a mãe, Isabel, para assumir a honraria de um dia ostentar, na Marquês Sapucaí, o Pavilhão da Escola de Samba em carnaval de vitória. E mais treinava, por sua conta, cada passo que dava em graciosidade e em apuro da vocação herdada da mãe e do pai. Isabel e Paulo exultavam ao ver que a filha querida um dia teria seu momento de glória na Marquês de Sapucaí.

Custou, sim, mas finalmente chegou o dia de Esmeralda mostrar sua graça. Na quadra da agremiação, pela primeira vez, ela treinaria com seu parceiro o papel de segunda porta-bandeira. E ele surgiu, negro e forte como o ébano, corpo de modelo e sorriso infantil. Foi um choque elétrico, os corações de ambos se espetaram um no outro em flechada de Cupido, e se prenderam em amor à primeira vista. Era Carlos Augusto o nome do passista que a pegou pelas mãos em suavidade e estilo. Esmeralda estremeceu e se viu bailando com seu príncipe encantado na pista dos seus sonhos.

O samba-enredo tocou, e quem estava na quadra não cria no que via: o príncipe e a princesa evoluindo como borboletas voejando em jardins floridos. Cada passo encenado por Carlos Augusto parecia pluma solta suavemente ao vento, enquanto Esmeralda o rodeava, – tão encantadora como um beija-flor adejando em meio às suas flores prediletas, – desfraldando em perfeição o sagrado símbolo da Escola de Samba do seu coração. Sim ninguém mais duvidava de que ali estava o casal do futuro, o mestre-sala e a porta-bandeira do ano seguinte.

***

Ensaios e mais ensaios, até que chegou o carnaval. Na Marquês de Sapucaí, a princesa Esmeralda e o príncipe Carlos Augusto lá estavam como segundo casal de mestre-sala e porta-bandeira. Suas fantasias seriam capazes de enciumar príncipes e princesas de verdade e do mundo do faz-de-conta. Nos seus semblantes, a felicidade emergia em deslumbre. Mas porque havia algo mais: o amor, que se firmara entre ambos como o sol a esparramar-se no esplendor do amanhecer: rápido e lindo! E veio a surpresa que eles silenciosamente prepararam: o conúbio em plena passarela do samba, antes da partida ao desfile, tendo os milhares de foliões e espectadores como testemunhas, tudo tão lindo como a passagem de um cometa no céu distante.

Paulo e Isabel se abraçaram ao casal em esfuziante alegria. E assim, naquele mágico momento, os casais arrancaram da platéia os mais entusiásticos aplausos. Sim, Esmeralda e Carlos Augusto casaram-se na batida do bumbo, como se fosse o repicar de dois corações em uníssono. E no ritmo do samba ecoou o grito de guerra cortando o ar: “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós!…”

O povo, emocionado, fez-se de pé ao ouvir a frase mágica do Hino da Proclamação da República em ritmo maravilhoso. E a escola adentrou a Avenida Marquês de Sapucaí contagiando o povo, do abre-alas até o último sambista, levando todos ao delírio. E houve a evolução divinal dos casais de porta-bandeira, com a Imperatriz Leopoldinense levando ao êxtase a multidão como jamais se viu naquela pista em que a alegria desfilava sob as bênçãos de Deus.

De repente, a Marquês de Sapucaí se tornou um colar de esmeraldas tremeluzindo em fulgor divinal. Que lindo! Mas a claridade vinha da alma dos sambistas, todos sambando, cantando e festejando o conúbio de Carlos Augusto e Esmeralda. No dia seguinte, nenhuma surpresa, a Zona da Leopoldina festejava nas ruas o título de campeã, enquanto Augusto e Esmeralda perpetuavam, a sós, o amor que nascera na quadra da Imperatriz Leopoldinense no ano de ouro de 1989:

Magnífica solução. Liberdade, liberdade completa. Pus-me a cantar estupidamente, batendo os dedos na tábua da mesinha: Liberdade, liberdade/Abre as asas sobre nós…

Eis o refrão de muitas vitórias saído da pena de Graciliano Ramos; eis o canto de liberdade nascido da inspiração de Cecília Meireles:

Diz-se que o homem nasceu livre, que a liberdade de cada um acaba onde começa a liberdade de outrem; que onde não há liberdade não há pátria; que a morte é preferível à falta de liberdade; que renunciar à liberdade é renunciar à própria condição humana; que a liberdade é o maior bem do mundo; que a liberdade é o oposto à fatalidade e à escravidão; nossos bisavós gritavam “Liberdade, Igualdade e Fraternidade!”. Nossos avós cantaram: “Ou ficar a Pátria livre ou morrer pelo Brasil!”; nossos pais pediam: “Liberdade! Liberdade! – abre as asas sobre nós”, e nós recordamos todos os dias que “o sol da liberdade em raios fúlgidos brilhou no céu da Pátria…” – em certo instante.

Que assim seja, sempre e sempre, a alegria do povo!

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